terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Crónica de um Chapéu de Chuva, preto e cor prata.

Sim, é fria. Bom, não muito. Digamos relativamente fria. Quero dizer, é preciso analisar a temperatura do corpo, e mais alguns milhares de acontecimentos aleatórios que determinam se realmente é ou não fria. Ou talvez não. Ou talvez sim. Ou talvez sim-não. Deixemos de filosofias prolongadas sobre o banal, e passemos ao cerne da explicação, ou descrição. Ou descrição-explicação.
    Certo dia estava eu à porta de um dos cafés da baixa, que são estupidamentes cheios de vida. Já agora deixem-me explicar o porquê dessa sobrelotação de massa humana em um lugar maravilhosamente normal. Uma das razões é o ar. Limpo, visível, respirável. Para além de estar muito bem construída, ruas largas e perpendiculares, com passeios ainda mais largos e calcetados ( não falo em exagero ), edifícios harmoniosos sendo todos da mesma altura, e por última : A praça do comércio, sendo uma praça bem modesta, tem lugar para um terço de toda a população lisboeta, sem hipérboles é claro, pois uma realidade nunca é mais do que a diminuição da própria imaginação.
    Depois de pegar o meu café, sentei em um banco para apreciar o calor primaveríl de um meio dia de inverno. O ofuscar do sol batia nas pequenas ondas que se jogavam contra as falésias de concreto. Um golo, uma inspiração a fechar o olhos para saborear a cafeína a envenenar meu sangue. Depois de ter repetido esse ritual de rotina, vi uma cena repugnante, falo repugnante porque seria uma das últimas coisas que gostaria de ver enquanto tomava meu café. Era um mendigo, sujo, com as roupas rasgadas, parecia cheirar mal, mas não quis aproximar meu nariz para comprovar. Depois de algumas olhadas desconfiadas de soslaio, comprovei não ser nada de mal. Foi nesse momento que o mendigo levantou uma pequena placa a dizer : Sejam bondosos, dêem-me dinheiro para comprar um chapéu de chuva. Não estava exactamente escrito assim, mas prefiro escrever certo aqui do que trocar ch por x e tirar algumas letras que fazem realmente falta para um sentido prático e denotativo da palavra. Continuando, achei aquilo realmente estranho. Qualquer mendigo que se preze pediria dinheiro para pagar uma cirurgia cara, para dar comida aos cães que precisam de uma cirurgia cara ou até pedir dinheiro para subornar o médico, ganhar remédios grátis e consequentemente vende-los para ganhar mais dinheiro. No entanto, esse mendigo violou complectamente as regras. Levantava a placa e balaçava de um lado ao outro com a cara mais neutra possível. Não me contive. Dei uns passos apressados em direcção ao mendigo, que continuava com a sua cena aparte de tudo e todos. Cheguei perto dele, mantendo uma distância respeitável. E perguntei-lhe :
    - Por que precisas de um chapéu de chuva ?
Nenhuma resposta. Julguei não ter falado alto o suficiente. Retornei :
    - Senhor ! Se não me disseres porquê é que precisas, não te dou.
Ele virou os olhos em minha direcção e respondeu :
    - Vai chover.
Fiquei ainda mais curioso, então para evitar mais conversas tirei cinco euros do bolso e dei-lhe. Voltei para o meu banco, sentei novamente e continuei a olhar para o nada. Estar sozinho com os meus pensamentos vazios. Devo confessar que fiquei curioso acerca do mendigo, mas não iria estragar o raro sol que tinha.
Durante esse tempo o mendigo desapareceu, e voltou novante passado cinco minutos com o chapéu de chuva na mão. Sentou-se, puxou um livro de Antonio Lobo Antunes e começou a ler. Bom, existe gosto para tudo não é mesmo ?
A minha curiosidade aumentou e várias dúvidas surgiram na minha cabeça. A primeira é : Como é que um mendigo que lê Lobo pode ser mendigo ? Será mesmo um morador de rua ?
Enquanto essas dúvidas enchiam a minha cabeça, senti uma gota cair na ponta do meu nariz, que fez um sinal de rígidez ao toque da agua fria. Se é fria ? Sim é fria ...
O mendigo abriu um sorriso, olhou-me de frente, e deu uma gragalhada. Abriu o chapéu de chuva, preto e cor de prata, e começou a dançar. Sim, ele estava dançando na chuva no meio da praça ! Aspirava alegria dos contornos dos seus movimentos. E a cada volta que dava no chapéu, projectava as gotas de chuva para longe. Seu corpo erradiava vida e eu a sentia, cada pequeno movimento despertava em mim algo maravilhoso, lindo.
O mendigo começou a correr e a dançar ao mesmo tempo, atravessou a rua, continuou a dançar. Eu apenas seguia-o com o olhar invejoso. O mendigo continuou e deu um pulo pela falésia abaixo.
Levantei-me surpreendido, horrorizado, cúmplice de um suicídio. Os ventos ascendentes levantou o mendigo que segurava no cabo do chapéu, ele começou a voar, dançando por entre as gotas de chuva e levando consigo a alegria toda daquela praça gigantesca. Ainda o vi sumir por entre neblina que formara com a chuva. Ainda o vi a sorrir, dar gargalhadas e dizer : Já não preciso do chapéu de chuva.
Acredito que ele subiu para o céu, e viaja pelo infinito, lançando a alegria que por um momento pude desfrutar. A voar com o seu chapéu de chuva, preto e cor prata.
Depois disso começei a pensar nas coisas pequenas da vida, porque talvez o mais interessante não é aquele carro estupidamente caro na sua garagem ou uma casa-milhões. Mas sim conseguirmos largar isso tudo para apreciar o ínfimo. Então, porque não comprar um chapéu de chuva, preto e cor prata, e pular da Baixa Pombalina ?


                Jordann Fel.

2 comentários:

  1. Antes de qualquer comentário gostaria de falar que essa foi a minha primeira crónica. Espero que tenha ficado boa, e que desfrutem cada pedacinho dela tal como foi bom escreve-la. Uma boa Leitura e abraços académicos à todos. :D

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  2. Hey Jordann.

    Muito boa mesmo a tua cronica.

    Realça os mais pequenas detalhes da vida e como eu costumo dizer... Pequenos detalhes, grandes diferenças.

    Alem disso mostra também como não é preciso ter tudo para ser feliz, porque o verdadeiro segredo da tão "desejada felicidade" é ambicionarmos o que podemos e a estabilidade emocional individual.

    Abraço
    Jamil

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